31 de agosto de 2013

Reencontro com as memórias de um liceu -ato 4

Desceu em mim um impulso confessionário, e quando assim sucede, agarro numa folha e rabisco as compulsivamente, não vá o pecado instalar-se e transformar-se em azia.
Expor os sentires é uma catarse que serena por isso aqui vai, em forma de narrativa confessional, dois segredos que poucos ouviram, mas que de tempos a tempos  invadem pausadamente o sossego dos sorrisos, que desfrutam irreverentes, como quem degusta prazeres, a ingenuidade dos actos praticados. ( lá estou eu com rodeios!!)
Mergulhemos nos segredos,
em voo planado de milhafre cusco ,
partamos todos para o reviver dos sentires ( assim consiga o narrador , fazer sentir a atmosfera e o ambiente de uma sala de aula recheada de sonhos juvenis e de outros ainda menos maduros, a raiar a infantilidade dos sonhadores compulsivos, onde se insere este que vos conta a estória).
Tentemos,
com calma, 
descrever o protagonista , e a relação que ele tinha com essa coisa estranha “sala de aula”. Para que não haja mal entendidos , sempre gostei da escola, só não gostava dos intervalos ( “intervalo”, traduza-se em linguagem do narrador como: momentos entediantes, enfadonhos, em que um adulto resolvia debitar coisas sem sentido a um conjunto de crianças à cuca do som do toque de saída, para se entrar na verdadeira essência da coisa… O “recreio!”).

Posto isto já entenderam que o “estudo” não era a minha especialidade, simplesmente porque não estava preparado para esse tipo de descoberta académica. Eu pura e simplesmente explorava fantasias e sonhos, criando o meu próprio cenário, criando e dessecando o meu próprio sentir, a minha própria consciência ( uma espécie de Sentimento de Si , precursor da neurociência de António  Damásio…!!! (http://metafisica.no.sapo.pt/guerra.html)  Como vêem , eu estudava era coisas muito mais avançadas!!!!).

Resumindo, para simplificar e não me tornar enfadonho, eu “esquizofreniava-me” nos “intervalos” ( não esquecer a definição da coisa) e em vez de ouvir o dito adulto-professor, fantasiava coisas outras, de olhos fixos num ponto qualquer do universo e vivia aventuras de temática vária, romances cor-de-lágrima, cowboyadas cujo herói era inevitavelmente “Aguia-quebrada”, índio sábio que liderava uma alcateia de lobos, contra os caras-palidas ( as minorias sempre me fascinaram!!!) , e outras que não vale a pena contar, porque demasiado oniricas e poderiam pensar que inalava fumos que na verdade nunca inalei, provavelmente por ter capacidade de induzir sonhos de forma perfeitamente natural, sem ajuda externa…).

Mas este viver estudantil tinha dois imbróglios de difícil solução ( os paradoxos , são isso mesmo, realidades opostas de difícil coabitação ): Os pontos /testes, e a recepção solene dos ditos.
Sempre recebi com entusiasmo os enunciados dos pontos. Era uma descoberta, e sempre me maravilhei com descobertas. Era ali que eu tomava consciência do que nunca tinha ouvido falar, era ali que “Aguia quebrada” perdia as suas batalhas, ali sim a luta era desigual, lutar contra armas atómicas era um verdadeiro suicídio, mas como a criatividade sempre me acompanhou, lá dissertava sobre a dita matéria, qual cientista perante algo verdadeiramente novo, e naqueles enunciados a matéria, era sempre algo de mesmo muito novo para mim! Não fosse a minha “culpa” e eu processaria os professores por perguntarem coisas exotéricas numa linguagem  altamente codificada…

Segredo um: ( afinal o motivo da estória são os segredos que pretendo revelar!). O meu genuíno estado de espirito durante a entrega dos testes.
Vou tentar descrever o estado por comparação, pois só assim conseguem sentir o que me ia na alma. Assim imaginem uma tombola do euromilhões por exemplo, e que cada nota anunciada era uma dessas bolas. Pois é! Era esse o meu acreditar, era essa a essência da minha Fé!

Acreditei sempre que o resultado daqueles indecifráveis enunciados davam origem a um determinado valor, por puro acaso! Eu tinha sempre azar, e nunca chegava aos números dos dois dígitos, só alguns, quase sempre os mesmos, tinham a sorte de levarem um numero jeitoso que lhes evitava sarilhos em casa!
Eu era pura e simplesmente um Calimero …(it’s an injustice. it is!!!).
Os bons números saiam sempre aos mesmos! Iam para o Rocha, O Morgado  o Filipe…
Faziam batota de certeza! Acertavam sempre nas perguntas!!!!
Mas a esperança renascia no próximo ponto.  Eu gostava dos pontos! Era é um azarado!

Segredo dois: Este guardei-o da família até hoje. Um breve preambulo para que se sinta o espirito do ato irreverente.
Na escola nunca li um livro obrigatório, fosse ele “ As viagens na minha terra”, os maias, “os lusiadas” ou “Fernando Pessoa” (  não fosse ele grande que não cabia num só titulo!!!).
Li-os mais tarde, que coisas a importantes como estas tem o seu tempo próprio e cada um tem o seu ( é mentira isto do tempo ser universal, treta que varias vezes consegui demostrar a mim mesmo, já que um minuto tem durações diferentes, “sendo diretamente proporcional ao estado de espirito de cada um”, ou “inversamente proporcional ao estado de espirito de cada qual”).

Mas vamos aos factos. Era já mais crescidinho e finalista do nosso LNA (77/78).
Exame ( 2ª chamada…. Raramente ia ás 1ªs….vá la saber-se porquê!) de Português do 7º ano, que daria acesso ao Propedêutico.

Preenchida a folha em ato solene, debrucei-me no enunciado, como quem mergulha no desconhecido ( neste caso a sensação foi semelhante a abrir os olhos de fronte às cataratas do iguaçu ), sem saber se a agua está fria, morna ou quente, aguardando que no mergulho a pele reaja de forma intempestiva ao sentir do embate.

Desta feita mergulhei-me todo por inteiro, no fascínio de ter simplesmente descoberto ( ali! naquele  instante!) um escritor maravilhoso, à medida que me transmutava na descoberta da AUTOPSICOGRAFIA de Fernado Pessoa e na qual me revia refletido  como se em vez de olhar um poema, me contemplava ao espelho:

“O poeta é um fingidor
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração. “

A minha mão tomou vida própria ( qual escrita de Lobo Antunes) e ao sabor das “vozes que marulhavam das palavras”, escreveu folhas e folhas desalmadamente.
Lembro-me de ter pedido por duas vezes mais folhas , pedido esse que intrigou a Vigilante, pois sentia-a a passar ao meu lado constantemente com olhar inquisidor e curioso.
Eu sentia-me possesso por alma poeta. E quando a êxtase terminou, lembro-me de estar suado e cansado, tal fora o empenhamento, daquela verdadeira descoberta, que me transformou o sentir e a forma de me envolver no universo!

Só não me lembro da pergunta!

Quando deu o toque para entrega dos testes. Olhei para as folhas e resoluto, guardei-as na mochila e levei comigo aquele meu tesouro linguístico, como que transporta a essência da vida, a essência do sentir.
A folha que entreguei, para avaliação , essa ia  em branco ( segredo revelado!!!)

Pela primeira vez sai de um exame com um sorriso na alma.

O ter chumbado a português não foi relevante. Afinal podia passar-se de ano chumbado a uma cadeira, e foi esse o meu destino.

As Folhas resistiram guardadas anos a fio, até que um dia (6 Setembro de 1998) alguém resolveu fazer uma limpeza ao meu desarrumado escritório e decidiu literalmente deitar para o lixo todos os meus papeis. Nesse dia ( que não esqueço, dia , mês e ano!), em que esquiços de desenhos, escritas infantis, rabiscos vários de muitos anos de desabafos solitários, voaram para o lixo, perdi parte de mim, parte do meu existir, que me deixou prostrado tempos infinitos,  (cá está o paradoxo do tempo!), mas que aos poucos, foi sarando e hoje apenas guardo este segredo de me ter recusado a entregar o exame, por sentir que aquela minha descoberta literária era de tal modo importante que a deveria levar comigo, para deleite próprio e mais tarde recordar.

Recordo,
ainda hoje,
de insistentemente perguntar à mana “ tens a certeza que se passa de ano chumbado a uma cadeira? Tens mesmo a certeza? “

Tinha.

Nesse dia senti que finalmente o numero da sorte me tinha saído!!!!

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